O HOLANDES E O KIBE
Quinta feira, 8 da noite, aeroporto de Guarulhos, sampa..
Eu e o Bhajet, na fila do checkin, KLM, malas do lado, meio frio, no aeroporto sempre faz frio, ainda mais a noite.. Hora prevista de saída do vôo, 11 da noite, ainda tinha tempo de sobra...
-Chuf, haluie..
-Eu vi, é bonita mesmo..
-Brasilíe??
-Lá, lá...
-Hui dutch.. tarif??
-Ana ma barif... haluie..
Conversa sobre a moça que ia nos atender, linda, lencinho tricolor, loirassa, cabelos presos pelo bonezinho da KLM, linda...Olhos muito, mas muito azuis.. linda...
-Good evening.. A loira falando comigo...
-Boa noite, português??
-Eu falar pouco.. english??
-Ok, my english is not very good, but...
-Hui ma berq árab??
O Bhajet perguntando se a moça não fala o árabe...
-Ia haie, como a moça vai falar árabe??? Com esses olhos azuis é certo que ela não fala...Eu respondendo ao Bhajet, em árabe é claro...
- Tarq ulaq...
-Ta legal, eu vou perguntar...
-Do you speak arabe??
A moça abriu um gostoso sorriso e delicadamente respondeu que gostaria muito de falar, mas ainda não sabia...
-Chuf ulaq, hui ma berq...
-Lafem??? Ruh BEIRUT, ma berq árabe???
-Bhajet, hui ma berq, hui dutch..
O Bhajet estava meio decepcionado, por a moça não falar o árabe, com o vôo para BEIRUT tinha que ter uma moça que falasse o árabe...
Coisas do Bhajet... E eu tentando explicar que a moça era holandesa e não falava o árabe... Claro que ele sabia, mas isso era um pouco de charme que ele fazia... A viagem é que fazia, ele estava feliz em ir ver os parentes, ir ver a terra natal, o Líbano, e eu junto, eu estava feliz junto com ele....
-You both moslem?
-Yes, we are, moslem food, please, do you have moslem food??
-Yes, Mr.., we have moslem and kosher food..
-Not kosher, thank you, we are arab, not jewish.. thank you...
-Chuf ia haie, chuf?? Ela não fala o árabe mas tem comida especial, viu??
-Haluie... (bonita, simpática)
É claro que ele viu e entendeu tudo o que a moça falou, o inglês dele é melhor que o meu, mas em publico ele não fala e diz que não entende nada... Esse Bhajet não é fácil... mas eu já conheço....
-Fi????, Haluie, aiuni...
Agora ele elogiou a moça, falou que ela é muito mais bonita....
Tickts na mão, cartão de embarque, tudo dentro dos conformes, e lá fomos nós, matar o tempo e tomar um café, áhue, em árabe áhue...Café curto, forte, bem tirado e na xícara fria..
Minha esposa, meu filho menor, todo mundo dando um alosinho de despedida, não ia ser tanto tempo assim, só uns 10 dias, eu ia voltar antes, o Bhajet, ia ficar lá, por mais um tempinho, uns dois meses mais...
Lá fomos nós, de casaco na mão, tickts na mão e os cartões de embarque a mostra, no portão de embarque...
- Um beijo, eu volto logo, um beijo...
Lá fomos nós, eu e meu guru, o Bhajet, íamos ter tempo de sobra para colocar o papo em dia, umas 10 horas de vôo, umas 10 horas de aeroporto lá na Holanda e mais umas 6 horas de vôo até Beirute, puta merda, uma tempo do cacete, será que só 10 horas em Amsterdã??? A moça da agencia falou que ia ser menos, mas eu já conheço esse menos....PUTA QUE PARIU...
Um frio danado, dentro do avião é muito mais frio, o ar no ultimo, os dutchs ligam no máximo, aqui eles sentem muito calor... Vamos lá... Acomodados, o Bhajet na janelinha e eu do lado, só duas cadeiras... Ele de terno e gravata, é claro, tinha que estar chique, muito chique, ia para o Líbano, tinha mais que ficar bonito... Só o sapato que era usado, ele já sabia que o avião ia inchar o pé dele, por isso colocou um sapato folgado ele não era marinheiro de primeira viagem....
O piloto foi muito bom na decolagem, devagarinho, nem deu para sentir, na decolagem....
Logo no começo do vôo as aeromoças já vieram com tudo, café, nescafé solúvel, uma merda tinha gosto de chaleira, eta cafezinho fodido, o Bhajet nem experimentou... Água gelada, suquinho, refri, cerveja, wiquinho...
-Icharab??
-Não vou tomar nada, vou ficar são, eu sei que você não vai beber comigo, então eu vou ficar são...Mas se ela caprichar no wiquinho, eu posso até experimentar... Vai?? Toma um junto comigo, vai???
-Lá, lá, lá....Ana ma icharab, ana moslem.. (eu não bebo, eu sou muçulmano)
-Ana barif int moslem, iala??...(eu sei que você é muçulmano, mas ninguém ta vendo, vai??)
O Bhajet deu risada, mas não tomou nada, se fosse na minha casa ou na dele ele tomava, é claro...
Vôo andando, todo mundo meio com sono, mais silencio do que prosa, de vez em quando a aeromoça passava perguntando se estava tudo certo, de vez em quando eu falava alguma coisa, de vez em quando o Bhajet perguntava alguma coisa, e assim o tempo passava...Eu já tinha tomado meus wiquinhos, e os do Bhajet também, e o sono veio mais rápido, muito mais rápido...Dormi sentado, esticado na poltrona do avião, o Bhajet dormiu do lado, sem wiqui, só com água e chá...
Em vôo a gente nem dorme muito, mais cochila do que dorme, fica meio dormindo e meio acordado, acho que é o barulhinho dos motores, aquele zumbido chato, que fica
sempre ligado, que não deixa a gente dormir, eu quase pedi para a aeromoça solicitar ao piloto que desligasse o motor que eu queria dormir...
Passaram algumas horas, e o sol veio bater na janelinha do avião, um sol grande, gostoso, quentinho, veio falar que já era hora de acordar e de tomar café, as aeromoças nem esperaram o sol falar nada, já começaram com aquele transito de carrinhos, trazendo uma porrada de coisas, guardando os travesseiros, as cobertas, e ajeitando cada passageiro de forma mais confortável, se é que no avião tem confortável depois de um tempão do cacete...
PUTA MERDA, QUE SACO...
Lá veio o pessoal de bordo com as bandejas de café, eu ainda lembrei a aeromoça do combinado antes do embarque..
-Moslem food, please, we are moslem, we both are moslem, please.
Eu falava que também era muçulmano para facilitar as coisas e para fazer companhia ao Bhajet comendo o mesmo que ele.
-Yes, Sr. It will be at your wish, thank you..
-Thank you...
O pessoal de bordo era eficiente, pelo menos até agora eles estavam mostrando isso, mas também ainda não tínhamos comido nada mais substancioso, só algumas bolachinhas, e uns petiscos que o Bhajet trouxe no bolso, pistache e bizer (sementes de abóbora torradas).
Lá veio a aeromoça trazendo as bandejas com o café, tinha um pouco de tudo, frutas, cereais, danoninho, guardanapo, talheres, uns embrulhados que eu não consegui
distinguir muito bem o que era, uma coisa meio que parecendo um omelete, ou uma torta, tinha também pães, torradas e bolachinhas...
PUTA QUE PARIU, esses holandeses gostam mesmo de bolachinhas.
Ai o Bhajet desconfiou e perguntou meio preocupado...
-Ia haie Pedro, chu haida??(o que é isso)
-Ana ma barif, badic?(eu não sei, você não quer)
-Lá, lá... chu haida?? lamash?(será que não é carne de porco)
-Não deve ser, a moça falou que é moslem food, você não escutou??
-Isso tá parecendo que tem carne de porco, eu não vou comer...
-Será que eles iam trazer depois de tudo que falamos, acho meio improvável...
-Isso aqui tem carne de porco, pode chamar a moça e perguntar.
-Tá bom, eu vou chamar, mas se tiver ela vai escutar o que não quer...
Apertei a campainha e a moça veio correndo..
-Please, we tolk about our food, and you told me that it wil be like my wish. What is this, please?
-Excuse me Sr, it is moslem food, this is moslem food, not pig meat, moslem food.
-Are you sure, that??
-I will follow up, just a moment please.
O Bhajet tem faro muito bom e era quase certo que aquilo não era moslem food, eu também achei que tinha presunto e lingüiça naquela coisa embrulhada que parecia torta...
Ai a aeromoça chegou, veio junto com um cara grandão, de cap e uniforme, o nome dele devia ter "van" no meio de tão holandês que o cara era, loiro, altão, magrão, cara reta, meio vermelho, bandeirinha tricolor no bolso do paletó, e com cara de meio preocupado, meio sério, meio sem jeito, veio falando uma língua fodida que eu e nem o Bhajet entendemos nada.. Meio mistura de inglês e dutch, meio alemão, meio flamengo, sei lá o que o cara falava, só deu para entender que ele queria se desculpar...Era o comandante do vôo, holandês de carteirinha carimbada, chefe do clube..
Eu logo saquei que a comida não devia ser mesmo moslem, que devia ter algum engano e que o cara veio se desculpar... Ele falou um monte de coisas, disse que houve um engano na escolha das bandejas e que realmente a comida foi entregue errado, que aquelas bandejas deviam ter sido trocadas, que as bandejas certas não estavam na estufa e que ele ia providenciar uma refeição certa, pedia que nós os desculpássemos pelo ocorrido e que ele não tinha como nos falar que sentia muito pelo fato de trocarem as bandejas. O cara estava realmente preocupado, eu estava escutando de camarote, o Bhajet também escutava todo sério, com cara de bravo, não falava nada, só olhava com ar de muito bravo, sem falar nada... O cara ficou mais preocupado, com mais cara de bunda do que cara de comandante..... Porra, depois de tudo
combinado, tudo acertado eles ainda trocam as bandejas e servem a comida errada??? Porra meu, esses dutch tão querendo, eles que tratassem de se desculpar direitinho....
Era coisa para dar muito samba, comida errada em mesa de mulçumano é foda, não pode, xinga o cara de filho de uma égua, de safado, de veado, mas não serve comida errada, não seve carne de porco, o cara fica muito mais puto e vai embora, ele não aceita mesmo. Era isso que estava acontecendo com o Bhajet. E o
comandante sabia, ele estava vendo no olho do Bhajet que isso estava acontecendo, ele sabia que estava errado e que podia tomar uma senhora galada pelo que estava acontecendo, o cara sabia que ia se fuder de verde e amarelo... Ele e a companhia dele, aquela da bandeirinha tricolor, aquela que tinha combinado antes do embarque servir moslem food, o cara tava quase ficando de 4, aquele dutch grandão e loirão...
E eu do lado do Bhajet, é claro, sabia que não foi querendo que as bandejas foram trocadas, mas me fiz de migué, era meu gurú, ali do meu lado, meu amigo, claro que não ia deixar ele de lado, eu era muito mais ele ali naquela hora, eu era moslem junto com ele...
Naquela hora eu também era moslem, e não comia nada que vem do porco, mas não contei que na mesma semana eu já tinha comido uma boa e deliciosa feijoada, isso eu não contei e nem podia, naquela hora eu era moslem também, moslem de carteirinha.
Mas o Bhajet ficou bravo mesmo. Ninguém falou que era carne de porco, nem o comandante nem a moça do lado, só falaram que as bandejas tinham sido trocadas, que eles nem sabiam porque, mas eles iriam providenciar a coisa certa. Eu pensei comigo mesmo e quase perguntei se fosse com kosher food as bandejas também poderiam ter sido trocadas, eu não pensei mais alto para não deixar o Bhajet ainda mais bravo... Que braveza, nem com musiquinha árabe ele ficou mais calmo, que braveza, mas isso passa é só chegar mais perto do Líbano que isso passa, o duro é que tinha ainda Amsterdã e uma porrada de tempo de espera... Mas passa.. Ele só ficou no
chazinho e na água, e nos pistaches que sobraram...
Depois disso, como quem não quer nada, o comandante veio de fininho e puxou papo comigo, se desculpando mais uma vez, mas perguntando de onde, para onde íamos, o que fazíamos, quem éramos nós, que ele realmente ficou preocupado com a troca das bandejas e gostaria de fazer alguma coisa para repor e sanar o que aconteceu, todo o papo em inglês, é claro, meio inglês e meio dutch... Eu de prosa com o comandante e o Bhajet quieto, sem falar nada, só escutando e fazendo que não entendia nada... Olhava pelo canto do olho, e olhava desconfiado, perguntava com os olhos.." O que esse cara tá querendo?"... Eu percebi e fiquei na moita, deixei rolar para ver o que o cara ia propor para reparar o que aconteceu... Ai veio o tiro final:
- Se os Srs me permitirem eu gostaria de convidá-los para um almoço lá na minha cidade, em um restaurante que já conheço e tenho a certeza que os Srs. também vão
gostar...
- Eu não sei... Meu companheiro e eu também não gostamos nada de vocês terem servido comida diferente daquela que nós combinamos...Será que lá tem comida moslem?
Será que tem coisas que nós vamos comer? Eu perguntei como resposta..
- Eu creio que sim, é um restaurante árabe e lá a especialidade deles é kibe, kibe de carneiro, eu já fui lá algumas vezes e é muito bom... E tenho a certeza que é melhor
que a comida servida aqui a bordo... Sei que vocês tem tempo de aguardo na sua conexão e podemos ir sossegados que não vão perder o seu vôo para Beirute, vamos chegar lá na hora do almoço, acho que tudo vai dar tempo e assim podemos reparar as bandejas aqui trocadas.
Até que o dutch queria ser simpático, eu quase topei na hora, mas não podia, precisava escutar o Bhajet...
-Ulac ia haie, tarif? Mas but?? Eu perguntei se ele entendeu e se aceitava o que o comandante tinha sugerido...
Claro que ele entendeu, a fome falou mais alto e num sorrisinho meio maroto acabou concordando.
Lá fomos nós, comer kibe em Amsterdã, kibe de carneiro.
segunda-feira, maio 19, 2003
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